domingo, dezembro 4

Entre Caios

Postado por Ariana Fernandes às 09:18

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara...

Eu sou uma imensa bola rompedora. Eu sou uma imensa bola de demolição imersa num caos de relacionamentos e casos. Eu sou quem destrói e o que resta da destruição. Eu sou quem transforma o mundo em ruínas e o que sobre dos destroços. Eu sou uma granada pronta que se arma sozinha ou por vezes me armam. Me balançam livremente. Derrubo. Desmonto. Me amarram e me sufocam. Explodo.

Eclode: destruo aqui dentro também.

Eu sou esse estouro barulhento em meio a um começo calmo de algo que não deixo durar. Eu sou um grito desesperado de sangrar a garganta e fazer estourar os tímpanos e que desencadeia um coração veloz, a ponto de queimar o asfalto do peito. Eu sou uma detonação bonita e que causa encantamento e chama, convida. Eles desejam e elas admiram. É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela bailarina.

Eu me entrego. Abro os braços. Abro as letras, lábios, pernas, coração e abro o barril de pólvora e logo no meio de um beijo ou sexo fogo ou briga com faíscas eu explodo tudo. Minha boca explode a cabeça dele e os lábios dela: os de baixo. Explode de um jeito bom, estronda prazer. Daí eu começo. Não quero. Me perco. Sufoco. Quebro.
Não é aqui o meu lugar.

O mundo já caiu, baby, só nos resta dançar sobre os destroços.

Eu me sentia como a Terra no instante em que o planeta viajante a atingiu, e agora tudo é silêncio. nada é sobre escapar, tudo é sobre aceitação.
Eu nunca tive medo de morrer, eu sempre tive medo de ser má.
De estar tão triste a ponto de não enxergar você.
E é nesse lugar que estou agora, andando nessa linha tênue.
Tentando não esquecer a humanidade dos outros por não estar plenamente consciente da minha.

Eu leria cada palavra que você escrevesse se elas estivessem em um livro. Eu visualizaria inúmeras vezes tuas performances embaixo do chuveiro se elas estivessem disponíveis no youtube. Eu compraria o som da tua risada se vendesse no itunes. Eu pararia para admirar cada uma de tuas fotos se elas estivessem expostas em uma galeria de arte. Eu ficaria encantada com qualquer escultura feita por você com o lixo do teu apartamento se estivessem em um museu contemporâneo. Eu compraria o teu cheiro se ele estivesse dentro de um frasquinho numa perfumaria por aí. Eu teria te pedido para ficar se eu soubesse que você não voltaria. Eu teria implorado pra você deixar sua escova de dentes azul - que combinava com a minha cor-de-rosa -, se eu soubesse que jamais te teria ali de novo. Confiei nas nossas idas e vindas como quem acredita na cura para o câncer. E sem saber, o teu sistema imunológico acabou com o vírus da nossa relação contagiosa e eu morri. Como quem perde as esperanças e prefere se arriscar num bote pelo mar Mediterrâneo. Você era o outro lado da costa, mas no seu bote imaginário não havia espaço para mim e para as minhas crises, loucuras, falta de ar. E você me deixou numa noite de sábado às 2 da manhã e eu me senti como uma refugiada que não sabia nadar. Morri afogada nas minhas próprias lágrimas enquanto você escolhia os dias de sol. Eu venderia meu orgulho no mercado livre se eu soubesse que seria o suficiente para te trazer de volta pra mim. Eu esperaria salvação aqui, no chão frio do meu quarto, se eu soubesse que você voltaria.

Mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.

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